domingo, 26 de dezembro de 2010

Vladimir Safatle: Paradoxo nativo

Fonte: Carta Capital



Fala-se muito no ensino para dar a falsa impressão à maioria dos
brasileiros de que os problemas são profundamente complexos.
Por Vladimir Safatle.
Silvia Zamboni/Folhapress

O Brasil é um país peculiar. Talvez não haja uma nação no mundo onde se fale tanto em educação. Todos os dias vemos comentários na mídia, declarações de políticos apontando a educação como prioridade, empresários pregando mais atenção à formação, especialistas com planos mirabolantes. No entanto, os resultados são, fora algumas exceções que merecem nota, absolutamente desalentadores. Esse paradoxo aparente pode ser explicado de maneira relativamente simples: fala-se muito para dar a impressão de que os problemas educacionais brasileiros são profundamente complexos e compreensíveis apenas para uma minoria de especialistas que cobram consultorias a preço de ouro. Nossos problemas educacionais são, porém, básicos e pedem apenas uma combinação de políticas de longo prazo com investimentos maciços, ou seja, perseverança e dinheiro.

Um exemplo maior dessa estratégia toca a situação dos professores. Não é necessária muita investigação para entender que o sucesso do processo educacional tem, como condição necessária, a existência de um corpo de professores altamente qualificado e motivado. Para termos tal corpo, faz-se necessário que a profissão de professor seja atrativa aos olhos dos nossos jovens mais brilhantes. Eles devem se sentir motivados a abraçar a carreira, eles devem identificá-la como uma carreira capaz de garantir um sólido reconhecimento social. Caso isto não ocorra, eles simplesmente procurarão outra profissão.

Agora, procure responder à seguinte pergunta: por que um ótimo estudante de Física assumiria uma carreira em que os salários são algo próximo do ridículo, as condições de trabalho são precárias e a carga horária não dá espaço para pesquisa e reciclagem? Nesse sentido, vale a pena lembrar que, quando apareceu a proposta de um patamar nacional mínimo de salários para professores, seu valor não passava de 900 reais. Mesmo assim, vários governadores procuraram vetá-lo porque a lei insistia que os professores não deveriam ter toda sua carga horária dentro de sala de aula. Maneira de lembrar que professores são pagos também para preparar aulas e pesquisar. Isto, diziam alguns governadores, aumentaria em demasia o custo da educação.

Antes de discutirmos o ponto relacionado aos custos, vejam como se constrói um sofisma. Vez por outra, alguém aparece para falar que a equação altos salários/boa educação não se sustenta. Elas simplesmente confundem “condição necessária” com “condição suficiente”. Não há nenhuma equação biunívoca que garanta a qualidade da educação, mas há um conjunto de fatores que, quando presentes, fornece resultados robustos. Da mesma forma, outros gostam de falar que o que motiva professores não é necessariamente o salário, mas “a grandeza da profissão”, “o prazer de ensinar” e outras pérolas do gênero. Alguém deveria sugerir uma lei para limitar o cinismo desses arautos do altruísmo alheio.

Outro ponto importante diz respeito à ausência de um sistema unificado de controle da qualidade do ensino. Pelos processos de avaliação como o Enem, a Prova Brasil e outros, o governo procurou- minimizar esse ponto. Mas precisamos de um sistema nacional de avaliação contínua da qualidade das aulas e das condições escolares (como existência de bibliotecas dignas desse nome, laboratórios, espaços de estudos- etc.). Isso só poderia ser feito pela criação de uma inspetoria-geral.

Precisamos de um órgão, ligado ao Ministério da Educação, composto de inspetores responsáveis por avaliar aulas, programas, o uso de materiais didáticos, assim como unificar currículos mínimos e cobrá-los.

Isso deveria ser aplicado tanto em escolas públicas quanto em escolas privadas (cuja qualidade está longe do valor surreal cobrado por suas mensalidades). Precisamos de um verdadeiro currículo mínimo nacional obrigatório capaz de organizar os conteúdos didáticos de todo o processo escolar. Qualquer professor sabe que, devido à ausência de tal currículo, nossos alunos são obrigados, muitas vezes, a enfrentar uma profunda desarticulação entre as matérias dadas em diversos anos, repetindo de maneira irracional conteúdos e subexplorando processos cumulativos.

Alguns costumam dizer que a imposição de um currículo mínimo nacional obrigatório seria um atentado contra a diversidade das perspectivas de ensino, a multiplicidade dos métodos de aprendizado e as diferenças regionais deste país continental. Talvez eles queiram, com isso, esconder o fato de que, por mais diversos que sejamos, os alunos devem aprender os mesmos conteúdos. As regras de geometria analítica são as mesmas em São Paulo e em Alagoas. Os horrores da ditadura devem ser ensinados independentemente do método de ensino ser montessoriano, construtivista ou tradicional. Muitas vezes, o discurso da multiplicidade e da diversidade é apenas uma cortina de fumaça contra a incapacidade de realmente ensinar.

Podemos nunca chegar a um acordo completo a respeito do que devemos ensinar aos nossos alunos. Mas temos um acordo mínimo. Por mais que tenhamos visões múltiplas a respeito do conhecimento, não creio existir alguém sensato que diria que as leis da física newtoniana e as condições socioeconômicas que levaram à Segunda Guerra Mundial não são conteúdos relevantes para ser ministrados aos nossos alunos.

Por outro lado, a autonomia federativa em relação às escolas de ensino fundamental e médio não pode servir de argumento para o bloqueio do desenvolvimento de políticas nacionais unificadas. Tal autonomia serve, muitas vezes, para justificar as piores distorções. Lembremos, por exemplo, de certos discursos que apareceram tentando justificar o fato de o governo FHC ter vetado o ensino obrigatório de filosofia e sociologia. Não foram poucos aqueles que destilaram o pior preconceito regional, afirmando que tal lei não faria sentido nos rincões do País. Para quem acha que depois do Rio Tietê só há mato, não faz mesmo muito sentido ensinar filosofia nos rincões. Já para quem não é acometido dessa alucinação visual herbária, um currículo nacional mínimo continua sendo necessário.

Por sinal, esse exemplo também vale para criticarmos o que poderíamos chamar de “o mito coreano”. Trata-se desse mantra, impulsionado por uma certa mídia, de que o Brasil deveria fazer na educação o que fez a Coreia do Sul. Sugiro que conheçam melhor a realidade educacional da Coreia do Sul, com sua ignorância a respeito dos modelos de pesquisa em ciências humanas e desenvolvimento do pensamento crítico. Desde o início do século XX, há no Brasil aqueles que gostariam de resolver o problema da educação a partir do paradigma da “formação da mão de obra qualificada”. Sem negligenciar tal problema, valeria a pena lembrar que a formação educacional não se resume a isso. Queremos formar trabalhadores, mas também cidadãos conscientes, sujeitos com alta capacidade crítica, indivíduos criativos, e para tanto não creio que o mito coreano possa nos ajudar.

Há ainda um último ponto a ser lembrado. Andando na contramão dos países desenvolvidos, o Brasil conseguiu desperdiçar todas as chances de dar realidade aos projetos de escola em tempo integral. Não é difícil compreender que o aluno que fica mais tempo na escola pode aprender mais e de maneira mais articulada. A imersão no ambiente escolar permite o desenvolvimento de atividades complementares e reforço de atividades de base. Desde a corajosa política dos Cieps, levada a cabo por Darcy Ribeiro, nunca mais o Brasil procurou implementar um plano de larga escala para o desenvolvimento de escolas em tempo integral. Por mais que tentemos inventar soluções paliativas e manobras diversionistas, não haverá melhora efetiva de nosso ensino sem estes três pilares (valorização da carreira de professor, avaliação contínua da qualidade por meio de inspetorias e escola em tempo integral).

Neste ponto, alguém poderia dizer que a implementação em larga escala de tais escolas seria impossível do ponto de vista financeiro. Aqui, podemos, enfim, discutir essa questão importante. O maior imposto que a classe média paga é a escola privada. Se uma família tiver dois filhos, ela pagará algo em torno de 2 mil e 3 mil reais por mês para a educação. Como essa família não tem escolha, já que ela não pode colocar seus filhos em escolas públicas, o melhor nome para esse gasto é “imposto”. A maior desoneração de impostos que um governo pode fazer no Brasil é dar à população a possibilidade de colocar seus filhos em uma boa escola pública. Sendo assim, para desonerar esse imposto, justifica-se a criação de algo como um “imposto vinculado aos gastos de educação” e que seria progressivo em relação à renda da população. Um imposto certamente muito menor do que as mensalidades que somos obrigados a pagar. Tal política certamente permitiria a criação de um forte sistema qualificado de escolas em tempo integral, fornecendo mais dinheiro para nossas políticas educacionais.

Isto é apenas um exemplo de como não devemos nos acomodar ao discurso fatalista de que não há como resolver nossos problemas elementares de educação. Esperamos daqueles que nos governa não a resignação e o pedido de paciência infinita diante dos problemas, mas a criatividade política que sabe encontrar saídas novas.

Talvez um bom exemplo do que somos capazes deve ser procurado no ensino universitário público. Durante a década de 90, o governo nos dizia ser impossível financiar um novo ciclo de expansão das universidades públicas, o que levou à política equivocada de estimular a proliferação de faculdades e universidades privadas de qualidade, muitas vezes, catastrófica. O Brasil sofreu e ainda sofre muito devido a tal equívoco. Mas vimos nos últimos anos como tal tendência poderia ser invertida. Graças a uma política acertada, o Brasil deve ter se tornado um dos únicos lugares do mundo onde, em vez de fecharmos universidades e departamentos (e lembraria que isso ocorre atualmente em países como o Reino Unido), construíram-se novos campi. Esse robusto ciclo de crescimento da universidade pública produzirá, no médio prazo, um impacto importante na qualidade de nosso ensino e pesquisa.

Defender e desenvolver novas universidades é algo que aparece como um imperativo. Talvez essa experiência sirva de exemplo. Ela nos mostra que, a partir do momento em que um governo coloca questões educacionais como prioridade real, soluções podem sempre ser encontradas.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP