terça-feira, 29 de junho de 2010

A elite de Washington ainda não entende a América Latina. Um dia vai entender?



por Mark Weisbrot, no jornal britânico The Guardian, em 26.06.2010

No filme “Guantanamera”, o último do renomado diretor cubano Tomás Gutiérrez Alea, o mito de criação iorubá é apresentado como metáfora para as dificuldades em provocar mudanças. Nesse mito, os humanos eram inicialmente imortais, mas o resultado é que os velhos acabavam sufocando os jovens, e assim a morte teve de ser criada.

Aqui em Washington, muitas vezes só a morte ou aposentadoria permitem a possibilidade de mudança — e ainda assim as instituições permanecem imortais e muitas vezes imutáveis. Em nenhum outro lugar isso é mais verdadeiro que no establishment de política externa.

Nas últimas semanas eu visitei cinco países e participei de numerosos eventos que cercaram o lançamento recente de um documentário — como Guantanamera, “South of the Border” também é um road movie — que Oliver Stone dirigiu e eu escrevi com Tariq Ali. Retornando a Washington, a grande distância que separa a elite da política externa dos Estados Unidos da vasta maioria de seus vizinhos ao Sul nos atinge como um choque cultural.

Para as pessoas dessa elite, as mudanças históricas que varreram a América Latina — especialmente a América do Sul — na última década são vistas através das lentes da mentalidade da Guerra Fria que julga toda mudança em termos de como ela afeta o poder dos Estados Unidos na região.

Jorge Castañeda é um ex-ministro das relações exteriores do México que ensina na Universidade de Nova York e se tornou um porta-voz na mídia para o establishment de política externa de Washington. Em um recente artigo, ele divide o continente entre “aqueles que são neutros no confronto entre Estados Unidos e o presidente venezuelano Hugo Chávez (e Cuba), ou que se opõem abertamente aos assim chamados governos ‘bolivarianos’ da Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Venezuela”, que ele rotula de “Americas-2″ e “esquerda radical”.

Para Castañeda, como para a secretária de Estado Hillary Clinton, é particularmente irritante que “tão recentemente quanto em 7 de junho, os países bolivarianos foram capazes de evitar o restabelecimento de Honduras à Organização dos Estados Americanos, apesar das eleições essencialmente livres e justas que foram realizadas em novembro passado”.

Mas não foram apenas os “paises bolivarianos” que não aceitaram eleições realizadas sob ditadura como “livres e justas”. O Brasil, a Argentina e governos representando a maior parte do hemisfério estão no mesmo campo. Na verdade, quando o Grupo do Rio divulgou sua declaração em novembro de 2009 dizendo que a imediata restituição de Mel Zelaya era uma condição necessária para o reconhecimento das eleições, mesmo os governos de direita aliados de Obama — Colômbia, Peru e Panamá — se sentiram obrigados a apoiar.

O golpe de Honduras, promovido por aliados dos Estados Unidos e por oficiais treinados pelos Estados Unidos contra um presidente eleito democraticamente, foi um marco nas relações entre Washington e a América Latina. Foi mais ou menos um ano atrás, em 28 de junho, que a esperança de que o governo Obama trataria seus vizinhos ao Sul de forma diferente do que fazia o time de Bush, foi destruída.  Enquanto o confidente e assessor dos Clinton, Lanny Davis, aconselhava e fazia lobby em nome do regime golpista, o governo Obama fez tudo o que pôde para ajudar a ditadura sobreviver e se legitimar.

Isso apesar de resoluções unânimes da OEA e das Nações Unidas pedindo o “restabelecimento imediato e incondicional” do presidente Zelaya, duas palavras que o governo Obama nunca pronunciou, assim como ignorou por mais de cinco meses os assassinatos, o fechamento de órgãos da mídia e outras violações maciças de direitos humanos que tornaram o “livres e justas” das eleições de novembro em Honduras uma piada doentia. A União Europeia e a Organização dos Estados Americanos nem mesmo mandaram observadores.

Mas com Washington ainda lutando para legitimar o governo hondurenho — apesar do assassinato de dezenas de ativistas políticos e de nove jornalistas desde que o governo “eleito” assumiu o poder — é típico retratar essa tentativa como uma luta contra governos “inimigos” em vez de uma disputa com a maior parte da região. O que essas pessoas não podem reconhecer, ou talvez nem mesmo entendam, é que se trata de uma questão de independência e autodeterminação, assim como de democracia.

Michele Bachelet do Chile e Lula da Silva do Brasil ficaram tão revoltados quanto os governos “Americas 2″ quando o governo Obama decidiu em agosto passado expandir sua presença em sete bases militares na Colômbia. E foi Felipe Calderón, o presidente direitista do México, que sediou a conferência de fevereiro em Cancún que decidiu criar uma nova organização para as Américas, que poderia eventualmente substituir a OEA, sem Estados Unidos e Canadá. O papel dos Estados Unidos e do Canadá ao bloquear medidas mais fortes da OEA contra a ditadura de Honduras sem dúvida jogou um papel motivador nessa medida.

Naturalmente, Washington tem o poder de tornar sua visão de Guerra Fria em relação ao hemisfério parecer meio real, ao adotar medidas de tratamento especial para governos mais à esquerda. Na Bolívia, a eleição de Evo Morales causou mudanças análogas ao fim do apartheid na África do Sul, com a maioria indígena do país ganhando voz em seu governo pela primeira vez em 500 anos. Seria o caso de imaginar que o governo Obama teria senso comum no cérebro para entrar do lado certo nesta questão. Mas não, eles continuam a aplicar sanções comerciais impostas inicialmente pelo governo Bush contra a Bolívia sob o assim chamado Andean Trade Promotion and Drug Eradication Act (ATPDEA), retiraram a certificação da Bolívia como país que coopera com a Guerra contra as Drogas e continuam a não informar quem exatamente os Estados Unidos financiam na Bolívia — isto é, quais grupos de oposição — com dinheiro do Departamento de Estado.

Tive o privilégio de assistir “South of the Border” em um estádio com mais de 6 mil pessoas em Cochabamba, Bolívia, algumas semanas atrás. Num momento do filme Evo Morales conta a história de Tupac Katari, um líder indígena que lutou contra os colonizadores espanhóis no século 18. Evo relembra as últimas palavras de Tupac Katari, antes dele ser esquartejado pelos espanhóis: “Morro como um, mas voltarei como milhões”.

Evo então olha para a câmera e diz: “Agora somos milhões”.

Ao contrário do que acontece em Washington, toda pessoa que estava naquele estádio sabia exatamente o que Evo queria dizer.