Fonte: Eduardo Guimarães
Na última quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a cobertura da imprensa ao seu governo. Alguns dias antes, disse que “editoriais” dos grandes jornais atacando-o seriam escritos por “falsos democratas”.
Nesta quinta-feira, os alvos das críticas presidenciais reagiram. O tom deles é de acusação ao presidente por ele supostamente pretender calar a imprensa. Um exemplo desse tom veio do jornal Folha de São Paulo no editorial “Devaneio autocrático”, o qual reproduzo em itálico e vou comentando ponto por ponto.
Devaneio autocrático
A DEMOCRACIA, numa definição de manual, é um sistema de governo no qual o povo exerce a soberania e elege seus dirigentes por meio de eleições periódicas; é um regime em que estão asseguradas as liberdades de associação e de expressão. Todos esses princípios estão plasmados na Constituição de 1988 – ela própria uma conquista democrática.
Por que definir para o leitor o sentido da democracia? A intenção, claro, é a de apontar alguma ameaça a esses preceitos contida nas críticas do presidente Lula à imprensa supra mencionadas.
Isso tudo é óbvio. Mas quem impele a repisá-lo é o presidente da República. Na versão de Luiz Inácio Lula da Silva, a democracia muito frequentemente – e cada vez mais – surge como se fosse uma concessão da sua vontade. Ele não parece tratá-la como valor, mas como capricho.
Espera-se, neste ponto, que se reproduza o ponto do discurso do presidente em que trata a democracia como concessão sua. Vejamos, a seguir, as palavras de Lula das quais o editorial reclama.
O vezo autoritário do mandatário se torna flagrante quando o que está em questão é a divergência de opinião ou o compromisso com a liberdade de imprensa. Lula não tolera ser criticado e convive mal com esforços de fiscalização de seu governo.
Ontem, numa cerimônia, ele disse:
"Acabei de inaugurar 2.000 casas, não sai uma nota. Caiu um barraco, tem manchete. É uma predileção pela desgraça. É triste quando a pessoa tem dois olhos bons e não quer enxergar. Quando a pessoa tem direito de escrever a coisa certa e escreve a coisa errada. É triste, melancólico, para um governo republicano como o nosso".
Quero saber em que “manual de democracia” (a expressão é da Folha) está escrito que um governante não pode reclamar da imprensa.
Para ameaçar a liberdade de expressão, um governante tem que fazer mais do que falar: ele tem que agir. Contudo, uma das associações internacionais que esse jornal apóia, a Associação Internacional de Radiodifusão, premiou o presidente no ano passado justamente por ele jamais ter tomado qualquer medida contra seus críticos na imprensa.
Detalhe: quem entregou o prêmio a Lula foi ninguém mais, ninguém menos do que o Presidente da Abert, Daniel Pimentel Slavieiro, segundo o Jornal da Globo.
E o editorial prossegue:
Talvez seja o caso de mencionar os mensaleiros, os aloprados, o "roçado de escândalos" da aliança com o PMDB. Ou, ainda, os benefícios pouco ortodoxos concedidos com dinheiro público a algumas empresas que este governo elegeu para implementar sua versão de "capitalismo de Estado". Nada disso compõe um figurino "republicano".
Bem, talvez também seja o caso de o jornal mencionar os escândalos do grupo político que apóia furtivamente, integrado pelo PSDB, pelo DEM e pelo PPS, tendo como figuras de proa o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador José Serra.
E o jornal apóia esse grupo, ainda que sem admitir, porque, nos últimos sete anos e tanto, esse veículo e seus pares apoiaram todas as posições oposicionistas contra as situacionistas, em termos federais.
Mensure-se quantas vezes o setor da imprensa que a Folha integra ficou do lado do governo e quantas ficou ao lado da oposição e se comprovará o que digo. Por isso, nunca se viu e nunca se verá uma acusação a Serra de não vestir o tal figurino “republicano”, pois seu governo, cheio de escândalos e acusações da oposição, não deve ter recebido um milésimo das críticas diárias e sistemáticas que são feitas ao governo Lula, apesar de governar o Estado em que o jornal está sediado.
O que mais impressiona, porém, é o raciocínio embutido na seguinte frase de Lula: "É triste quando a pessoa tem o direito de escrever a coisa certa e escreve a coisa errada". É uma afirmação tosca, sem dúvida, mas antes disso autocrática. Não faz sentido no contexto da democracia.
A imprensa tem de ser livre, inclusive para errar – e responder por isso perante seu público ou à Justiça, sempre que for o caso. Essa liberdade atende sobretudo ao direito do cidadão de ter acesso a informações.
Ok, a imprensa tem que ser livre. E onde foi que ela deixou de ser livre? Por acaso Lula tomou alguma medida contra a imprensa? Deixou de lhe dar verbas oficiais? Pediu a cabeça de algum jornalista, como faz um certo governador de Estado muito ao gosto da Folha? A resposta é não. Lula apenas criticou os seus críticos como é direito até do mais humilde cidadão fazer.
Lula disse ainda que "setores da imprensa" deveriam olhar para pesquisas de opinião antes de tirar conclusões sobre ações públicas de seu governo. Em alguns casos, como o desta Folha, as pesquisas são realizadas pelas mesmas empresas cujo trabalho Lula busca desqualificar.
Será que o fato de a Folha ter um instituto de pesquisa que dá boas notícias para Lula, talvez até para não divergir criminosamente de outras sondagens e se desmoralizar, dá ao jornal o direito de não admitir que aquele que critica tanto e com tanta virulência critique igualmente a quem o criticou? Se alguém quer calar alguém, não me parece que seja o presidente da República.
Tampouco é verdadeira sua afirmação de que avanços sociais ou do país obtidos neste governo não tenham sido noticiados. Foram – e de maneira exaustiva.
O problema é outro. Recentemente, o presidente da República agrediu os valores democráticos ao equiparar os presos políticos de Cuba aos presos comuns do Brasil – e endossar os crimes de uma ditadura.
Agora, ao criticar mais uma vez a imprensa, comporta-se como quem aspira à unanimidade – algo que está longe de ser um padrão democrático.
Como diriam FHC e Serra, além do “nhenhenhém” e do “trololó” ideológicos sobre Cuba, que nada têm que ver com a conversa por se tratarem de opinião do jornal e não de paradigmas universalmente aceitos, pergunta-se por que Lula aspira à unanimidade ao criticar quem o critica e a imprensa não, se ela faz a mesma coisa que ele?
O que essa imprensa quer é que Lula apanhe calado. Não aceitar que o presidente opine sobre quem opina sobre ele é o único devaneio autocrático que se pode encontrar nessa questão.