Acho que acontece com todo mundo. Basta ficar ensimesmada com um assunto para que eu comece a receber, de toda parte, as mais variadas informações sobre o tema. Assim tem sido, ultimamente, com a tal da ADHD aqui nos Estados Unidos, conhecida, no Brasil, como TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Pois uma amiga que trabalha com pesquisas na área de neurologia e também vive encasquetada com a aparente epidemia que tomou conta do país — e dá sinais de estar se espalhando pelo mundo — me mandou o nome de um livro que corri, comprei e li imediatamente.
“Anatomia de uma epidemia” (tradução literal para o português já que ainda não existe versão na nossa língua) é do escritor Robert Whitaker, ganhador de prêmios na área de jornalismo científico. Ele traça um cuidadoso histórico do aumento das doenças mentais (em número de casos per capita e de variedades de doenças também) nos últimos cinquenta anos. E analisa, com base nas pesquisas médicas, o surgimento e uso de remédios no tratamento da depressão, da esquizofrenia, da bipolaridade, etc.
Robert Whitaker cita cientistas que tinham bons cargos e prestígio mas foram afastados e considerados malditos quando enveredaram por pesquisas que mostravam resultados de longo prazo melhores para o tratamento das doenças mentais que dispensavam os remédios. Falando assim, parece leviano já que tantos casos graves necessitam da farmacologia para evitar desfechos dramáticos. São conhecidos os exemplos de pessoas que, em crise, acabaram escolhendo o suicídio. Então, que fique claro antes de mais nada: não se trata de negar a existência das doenças mentais ou a necessidade de tratamento medicamentoso. Mas o livro discute, com profundidade e profusão de exemplos de pesquisas científicas, a validade do uso dos remédios para a maioria dos casos.
Por exemplo, a doutora Nancy Andreasen, que usou a ressonância magnética para acompanhar mudanças no cérebro de pacientes psicóticos por cinco anos, constatou uma redução progressiva do volume do lobo frontal, acompanhada de perda de habilidades cognitivas. Em uma entrevista ao The New York Times, em 2008, ela afirmou: “Quanto mais remédio você toma, mais perde tecido cerebral”.
Whitaker ressalta, sempre citando resultados de pesquisas feitas por psicólogos e psiquiatras, que os ciclos de crises depressivas, de ansiedade, surtos psicóticos e esquizofrênicos podem se tornar mais freqüentes em certos pacientes medicados. Ele também deixa claro que, apesar de ser lugar comum falar da depressão como um desequilíbrio químico no cérebro, não existe nenhuma prova científica direta que suporte essa afirmação tão popular. Até hoje, há evidências indiretas.
Não vou me alongar, ainda mais, nas constatações a respeito de todas as doenças mentais, diagnósticos e tratamentos. Me concentro na TDAH que é o capítulo mais curto do livro e o que mais me interessa. Ao analisar o que está acontecendo com essa nova síndrome, o escritor encontrou muitas semelhanças com o desenvolvimento do diagnóstico de outras doenças e, principalmente, com a dinâmica do tratamento, o trabalho conjunto dos psiquiatras (americanos em geral) e da indústria farmacêutica para promover a medicação como única saída. Me preocupa ver o poder financeiro que essas empresas têm associado ao respeito e à reverência que normalmente emprestamos a todos os profissionais da área médica e o pragmatismo da sociedade americana que quer sempre respostas rápidas e objetivas para tudo.
Voltando a TDAH. Estamos falando em medicar e alterar, talvez para sempre, a química do cérebro de crianças de 6, 7 ou 8 anos de idade. E pior, sem saber exatamente o que está sendo alterado! Os mesmos psiquiatras, que receitam os remédios, não sabem dizer quais serão as consequências na vida daquele paciente mirim, dentro de 12, 15 ou 20 anos. Mas ressaltam que tudo é uma questão de custo/benefício. “Não é melhor a criança conseguir se concentrar para assistir aula e fazer os deveres?”, costumam perguntar. Uma amiga minha ouviu o seguinte: “Você não quer que o ambiente, na sua casa, se torne mais tranquilo?” Mãe de quatro filhos, o mais velho com 9 anos, ela garantiu que não. Se estivesse procurando sossego, não teria uma prole tão vasta.
Se os psiquiatras não sabem dizer o que vai acontecer com as crianças medicadas, as estatísticas já dão motivo de sobra para preocupação. Os estimulantes usados para tratar a TDAH (ritalina e seus derivados) provocam uma montanha-russa diária nos sentimentos da criança. Ela sente o coração apressado pela manhã, depois de tomar o remédio. Algo estranho se passando por dentro do corpo, que deixa a criança quieta, calada e atenta. No fim do dia, normalmente, existe uma explosão de raiva, choro. É como diz o Whitaker: “Toda criança, sob o efeito de estimulantes, se torna um pouco bipolar”.
O doutor Joseph Biederman e a equipe do Massachussetts General Hospital mostraram, em 1996, que 11% das crianças diagnosticadas com TDHA, quatro anos depois foram diagnosticadas com bipolaridade, doença que não fazia parte do quadro inicial. Em 2003, o psiquiatra Rif ElMallakh, da Universidade de Louisville, costatou que 62% dos pacientes jovens com bipolaridade já haviam sido tratados com estimulantes e antidepressivos antes de apresentarem bipolaridade. E Gianni Faedda descobriu que 84% das crianças tratadas com bipolaridade na Luci Bini Mood Disorders Clinic, de Nova York, entre 1998 e 2000, já tinham sido expostas a remédios psiquiátricos.
Aí, o escritor mostra como o uso de estimulantes, como a ritalina, no tratamento de crianças consideradas hiperativas, “coincidiu”, uma década e pouco depois, com a explosão de casos de bipolaridade juvenil. Psiquiatras holandeses estudaram um fato curioso: em 2001 tinham apenas 39 casos de bipolaridade infantil em todo o país. Compararam os dados com as estatísticas americanas onde a probabilidade de um jovem apresentar sintomas de bipolaridade antes dos 20 anos de idade é dez vezes maior e concluíram que o motivo mais provável para uma diferença tão grande é o fato de que o índice de prescrição de estimulantes e antidepressivos, para crianças, nos Estados Unidos, é muito mais alto.
Fato é que as crianças medicadas se tornam mais dóceis, mais administráveis em casa e na sala de aula. Mas todos os estudos mostram, também, que não existe vantagem para a criança, em matéria de desempenho escolar. Ou seja, ela não aprende mais, não passa a ter notas melhores porque está sendo tratada com estimulantes. Aqui vão alguns exemplos:
* Doutor Alan Sroufe, da Universidade de Minnesota, em 1973, disse que o remédio ajuda no desempenho das atividades repetitivas que precisam de mais atenção mas não afeta, positivamente, a capacidade de raciocinar, solucionar problemas e aprender.
* Doutor Herbert Rie, do Departamento de Pediatria da Universidade Estadual de Ohio, em estudo de 1978, concluiu: “A ritalina não provocou nenhuma melhoria de vocabulário, leitura, ortografia e matemática além de atrapalhar a habilidade de resolver problemas. Reduz o empenho necessário para aprender”. O artigo diz que a ritalina afeta o comportamento mas não tem impacto sobre a capacidade de aprender e ainda pode mascarar problemas acadêmicos. Ele pede que o remédio seja usado com reserva.
* Russell Barkley, Medical College of Wisconsin: “O principal efeito dos estimulantes parace ser a melhoria na capacidade de administrar a classe e não o desempenho acadêmico”.
* Carol Whalen, psicóloga da Universidade da Califórnia em Irvine, em 1997: “é especialmente preocupante que os efeitos negativos se dão nas funções cognitivas complexas, como a flexibilidade para resolver problemas ou o pensamento divergente”.
Em 2002, um grupo canadense fez uma revisão da literatura científica: analisou 14 estudos envolvendo 1.379 jovens e concluiu que não existe evidência de melhoria no desempenho acadêmico para as crianças que tomam estimulantes.
Nos anos 90, uma equipe de especialistas em ADHD foi selecionada pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH, sigla em inglês) para fazer um estudo chamado Multisite Multimodal Treatment Study of Children with ADHD, que concluiu: “A eficiência de longo prazo dos medicamentos estimulantes não foi demonstrada para nenhum domínio do funcionamento da criança”.
Duvido que professores e diretores das escolas americanas, que descrevem os estimulantes como algo simples e necessário tal qual os óculos para os míopes, tenham alguma noção a respeito das possíveis consequências da medicação no longo prazo. Duvido que saibam diferenciar entre uma criança que tem problemas mentais agudos e talvez precise de remédios, de outra com alguma dificuldade de aprendizagem associada a um momento pessoal difícil, que produz um quadro parecido com a TDAH. Mas eles são rápidos em sugerir uma visita ao pediatra ou, imediatamente, ao psiquiatra. E a avaliação dos professores, a respeito do comportamento dos alunos, em sala de aula, tem um peso enorme no diagnóstico final. Me parece que o assunto é muito sério e que os professores, por melhores que sejam, não estão capacitados para sugerir a necessidade de algum tratamento psiquiátrico.
Os remédios, com certeza, tornam mais administrável a sala de aula com quase 30 crianças. Já pensou se várias forem levadas da breca? Não pararem sentadas um minuto? Todas levam para a classe os problemas que trazem de casa. Mas eu sempre me pergunto o que faziam a Tia Rosa e a Tia Bela (juro que esses eram os nomes das minhas professoras primárias!). Também tínhamos uma sala de aula cheia. E me lembro bem de ter de sentar ao lado do pestinha da turma e chegar em casa com as maria-chiquinhas destroçadas de tanto que ele puxava meu cabelo, tentando sair da carteira. O que será que essas Tias-professoras têm a dizer dessa epidemia de TDAH?