sábado, 17 de julho de 2010

Menino de Rua

Fábio Henrique Ramos

Sou pequeno e pouco desevolvido, acho que é porque como quase só pão. Mas as pessoas ainda assim têm medo de mim. Agastam-se temerosas quando me aproximo. Nos carros, os vidros se fecham, como por encanto, quando me vêem. Aprendi a usar este poder e várias vezes já consegui que me dessem dinheiro ou outros objetos. É só fechar a cara e os grandes tremem, dando-me o que quero. Não dá para entender! Mas é claro que os cacos de vidro em minhas mãos devem ajudar a convencê-los.

Deito-me nos passeios, comendo alguma coisa, ou circulo entre os carros, testando minha perícia em desviar-me deles, enquanto passam em alta velocidade. Às vezes penso que se algum carro me pegasse seria melhor. Isso tudo acabaria.

É, esta vida é tão ruim, tão seca! Meus companheiros me agridem por qualquer coisa e me tomam o que consigo, se lhes interessa. Não há amizade! Fazem-me lembrar do homem que morava com minha mãe. Só me batia e dizia palavras ásperas, que me cortavam por dentro, enquanto me fitava com ódio. Um dia fugi dele e de tudo aquilo. Mas fiquei sem minha mãe, único ser que já me afagou e me dirigiu palavras de carinho. Sinto-me tão só! Queria fugir de novo, mas para onde? Já cheirei cola e delirei por horas seguidas, mas era ruim, como um sonho louco. E, ao voltar a mim, lá estavam de novo as pessoas com seus semblantes frios passando, os carros que não param (para onde eles vão?) e a fome.

Ah! a fome! Aquela queimação por dentro, te corroendo o estômago! Dá vontade de roubar, de matar, de fazer qualquer coisa para acalmar a maldita. Se peço, dão-me só pão duro, seco. Uma vez, quando ainda vivia com minha mãe, lembro-me que ela fez uma comida quentinha. Tinha arroz, feijão, bata e até salsicha! Que delícia! Mas depois, nunca mais senti o prazer de comer algo com cheiro, de fazer na hora.

Um dia vi pela janela de uma casa uns meninos, assim do meu tamanho, brincando de videogame. Pareciam tão felizes! Sorriam despreocupados do que iam comer naquele dia, ou onde iam dormir.

Depois entrou uma dona lá no quarto e os beijou e falou com eles com tanto amor que me enchi de vontade de ter aquilo também. Então, pulei a grade do jardim e me aproximei da janela para sentir tudo mais de perto. Não sei que idéia maluca foi aquela, mas eu fui atraído por aquela cena. A mulher se parecia tanto nos gestos, com minha mãe! Eu queira fazer parte, por uns minutos que fosse, daquela reunião de onde se irradiava tanta energia, tanto afeto!

Mas o primeiro menino me viu a arregalou os olhos em minha direção, incapaz de emitir um som, tamanho o seu pavor. Olhei para trás, assustado, procurando uma razão. A senhora começou a gritar desesperada, acompanhada dos meninos, e logo surgiu pela porta de entrada da casa um homem alto com alguma coisa na mão. Não deu tempo de ver o que era, somente sei que ele bateu forte com aquilo na minha cabeça e tudo se escureceu à minha volta.
 
Não senti mais fome, nem dor, nem frio. Fiquei muito tempo numa espécie de anestesia, vendo somente vultos e mal compreendendo o que se passava em torno de mim. Quando recobrei totalmente os sentidos, vi-me deitado em uma cama muito limpa, com flores lindas em vasos nos cantos do quarto, e uma suave música dava-me uma deliciosa sensação de bem-estar. Depois de alguns minutos, entrou no quarto uma enfermeira muito agradável, que, sorrindo, pegou em minhas mãos e disse muito naturalmente:

- Acabou meu filho! Você está livre! O estágio foi concluído.

- Como assim moça?

- Você retornou à sua verdadeira vida, deixando no mundo seu corpo perecível, com todas suas dores e necessidades.

- O que?

- Isso mesmo, querido, você morreu!

(Reformador, Fevereiro de 2003)