sábado, 6 de junho de 2009

Amor ao Primeiro Cheiro?




Fonte: Revista Ciência Hoje

Colunista discute possível papel de proteínas do sistema imune na seleção de parceiros em humanos

Os amantes, tela de 1923 do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973). O sistema imune foi evolutivamente moldado para a defesa de nosso organismo contra a invasão de agentes estranhos como vírus e bactérias e para impedir o desenvolvimento de doenças como o câncer. Ele é capaz de distinguir entre as moléculas do indivíduo e aquelas estranhas ao seu organismo. Sua atuação depende em grande parte do complexo principal de histocompatibilidade, mais conhecido a partir de sua abreviatura inglesa MHC.

O MHC é uma região cromossômica que ocorre em todos os vertebrados mandibulados e que tem dezenas de genes envolvidos na imunidade inata e adaptativa. Esses genes são ativados em resposta à presença de elementos “estranhos” ao organismo do indivíduo (proteínas, polissacarídeos e lipossacarídeos que não são normalmente encontrados ali). Esses elementos estranhos, conhecidos como antígenos ou imunógenos, são capazes de ativar uma reação de defesa do organismo — a reação imune.

As moléculas do MHC têm uma estrutura única para cada indivíduo. Estudos mostraram que essa diversidade é capaz de influenciar a suscetibilidade e a resistência dos indivíduos contra doenças. Há um consenso de que a batalha que a nossa espécie tem travado por milhares de anos contra patógenos tem influenciado a evolução desses genes.

Falhas na função normal do MHC costumam provocar uma imunodeficiência severa, doenças autoimunes, desenvolvimento de tumores e até a morte. O MHC influencia ainda a rejeição a enxertos e a tolerância fetal durante a gravidez. Além disso, alguns de seus genes são essenciais para o desenvolvimento e funcionamento do sistema nervoso e remodelamento sináptico.

Algumas pesquisas sugeriram que o MHC estaria envolvido também na função olfatória, na escolha de parceiros e na reprodução dos vertebrados. Contudo, esses estudos têm ainda enfrentado ceticismo. Mas como esse complexo poderia influenciar a seleção de parceiros? Antes de discutir isso, precisamos entender o papel da sua diversidade em diferentes indivíduos.

A variabilidade do MHC

Talvez o aspecto mais marcante do MHC seja a sua extraordinária diversidade genética. Os genes clássicos para o MHC possuem centenas de variantes (ou alelos) e estão entre os mais polimórficos do genoma humano. Esses polimorfismos ocorrem principalmente na região de ligação das proteínas produzidas pelo MHC com os peptídeos derivados dos antígenos, o que sugere que a seleção favoreça a variabilidade nesses locais. Mas que fatores podem influenciar essa diversidade?

Os alelos do MHC parecem ter sido selecionados por sua habilidade de proteger os organismos contra agentes infecciosos. No homem, por exemplo, esses alelos estão associados à resistência contra inúmeras doenças como Aids, malária, tuberculose, hepatite e lepra.

Outros estudos mostram também que a variabilidade do MHC influencia a resistência em populações silvestres de peixes, roedores, serpentes e carneiros. Esses resultados são particularmente interessantes, pois indicam o impacto desses genes sobre a adaptação de populações na natureza. Além disso, análises indicam que a presença de alelos diferentes em roedores, peixes e mesmo no homem tem tornado seus portadores mais resistentes a infecções em comparação com indivíduos que possuem alelos similares.
A diversidade do MHC talvez seja mantida nas populações devido ao valor seletivo dos alelos menos frequentes. Alelos raros ou novos são benéficos para seus portadores, pois os patógenos não estão adaptados a eles.

Seleção sexual e MHC

Por outro lado, algumas pesquisas chamaram a atenção para uma associação surpreendente (e controversa!) entre o MHC e a biologia de seus portadores. Segundo esses estudos, os genes do MHC podem estar sujeitos a um processo de seleção sexual, que influenciaria as preferências de acasalamento de seus portadores e proporcionaria a geração de uma prole mais resistente imunologicamente.

Em populações de espécies como o faisão, os indivíduos parecem selecionar parceiros que possuam alelos específicos do MHC. Nesse caso, a maioria dos indivíduos apresentará preferências similares na escolha de parceiros e esse comportamento pode gerar, após algum tempo, uma uniformidade em relação a esses genes nessa população. Para traçar um equivalente com a espécie humana, seria como se todas as mulheres se relacionassem apenas com homens parecidos com o Brad Pitt.

Em outras espécies, pesquisas mostram que os indivíduos selecionam parceiros que apresentam MHCs similares aos seus próprios — pardais são um exemplo. Já em camundongos, os casais são formados preferencialmente por indivíduos que possuem MHCs diferentes. Nesse caso, haverá uma maior gama de escolha para as populações analisadas.

Olfato e MHC

Mas como se dá a seleção de parceiros baseada no MHC? Estamos falando aqui de moléculas – proteínas codificadas pelos genes desse complexo – presentes na superfície de células específicas relacionadas com a defesa imune, um processo que ocorre muitas vezes de forma imperceptível no interior de nossos corpos.

De acordo com os resultados de alguns estudos, a percepção olfatória desempenharia um papel central nesse processo. Os fragmentos dos antígenos associados ao MHC podem ser diluídos em fluidos corporais como a urina, a saliva e o suor. Essas moléculas poderiam assim ser captadas por neurônios sensitivos olfatórios presentes em outros indivíduos, de forma a desencadear sensações agradáveis ou não.

Uma outra explicação sugere que as moléculas de MHC parcialmente degradadas poderiam transportar substâncias circulantes voláteis capazes de serem captadas por receptores olfativos. Há ainda uma terceira hipótese, segundo a qual as moléculas de MHC poderiam moldar a proliferação de populações da flora bacteriana presentes em um indivíduo. Estas, por sua vez, poderiam produzir moléculas odoríferas.

Como a diversidade de fragmentos de antígenos associados ao MHC é específica para cada indivíduo, cada um teria um padrão único de odores que podem atrair — ou não — indivíduos do sexo oposto.

MHCs e seleção sexual no homem

Ainda há muita controvérsia quanto à influência dos genes do MHC sobre as preferências de acasalamento em seres humanos. A maioria das pesquisas sobre o assunto foi realizada a partir da análise da relação entre a preferência por odores corporais e a variabilidade de MHCs em grupos de indivíduos selecionados.
Em um exemplo bem conhecido, estudantes universitários foram analisados com relação ao prazer que sentiam após serem expostos a odores presentes em camisetas utilizadas por pessoas que possuíam MHCs similares ou diferentes. Em geral, as mulheres preferiram odores de homens com MHCs diferentes dos seus. Esse padrão foi o oposto em mulheres que tomam anticoncepcionais. Os homens, por sua vez, também preferiram mulheres com MHCs diferentes, embora os resultados não fossem significativos nesse caso.
Uma pesquisa realizada recentemente por uma equipe chefiada por Maria da Graça Bicalho, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), apontou uma associação entre o MHC e a atração entre casais. Realizado com 90 casais e apresentado em um congresso da Sociedade Europeia de Genética Humana em Viena, Áustria, o estudo concluiu que, inconscientemente, as pessoas tendem a escolher como parceiros indivíduos que apresentem diferenças significativas em relação a seu próprio MHC.

Obviamente, existe uma série de outros fatores envolvidos na escolha de parceiros entre nós, humanos. Fatores sociais e comportamentais são sem dúvida preponderantes nessa escolha. Mas quem poderia imaginar que talvez também estejamos escolhendo nossos amores pelo cheiro?

Jerry Carvalho Borges
Universidade do Estado de Minas Gerais 05/06/2009

SUGESTÕES PARA LEITURA Grob,B., Knapp,L.A., Martin,R.D., and Anzenberger,G. (1998). The major histocompatibility complex and mate choice: inbreeding avoidance and selection of good genes. Exp. Clin. Immunogenet. 15, 119-129.
Jordan,W.C. and Bruford,M.W. (1998). New perspectives on mate choice and the MHC. Heredity 81 (Pt 3), 239-245.
Klein,J., Sato,A., and Nikolaidis,N. (2007). MHC, TSP, and the origin of species: from immunogenetics to evolutionary genetics. Annu. Rev. Genet. 41, 281-304. Marrack,P., Rubtsova,K., Scott-Browne,J., and Kappler,J.W. (2008). T cell receptor specificity for major histocompatibility complex proteins. Curr. Opin. Immunol. 20, 203-207. Piertney,S.B. and Oliver,M.K. (2006). The evolutionary ecology of the major histocompatibility complex. Heredity 96, 7-21.
Traherne,J.A. (2008). Human MHC architecture and evolution: implications for disease association studies. Int. J. Immunogenet. 35, 179-192.