domingo, 23 de maio de 2010

Fabrício Oliveira: “o passivo do governo de MG é crescente no tempo”.


Fabrício Oliveira - Foto: Mac Silva
Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte, e coordenador do Centro de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o professor Fabrício Augusto de Oliveira é autor de vários livros sobre economia brasileira e finanças públicas, entre eles “Economia e Políticas das Finanças Públicas no Brasil” e “Subprime: os 100 dias que abalaram o capital financeiro mundial e os efeitos da crise no Brasil”.

Em 2010, produziu o artigo “Contabilidade Criativa: como chegar ao paraíso, cometendo pecados contábeis – o caso do governo do Estado de Minas Gerais“. Este trabalho examina o significado e a prática da Contabilidade Criativa, enquanto instrumento utilizado pelas administrações públicas e privadas para maquiar e apresentar resultados mais favoráveis de sua gestão. Na entrevista a seguir, o economista Fabrício Oliveira identifica práticas do Governo de Minas onde essa manipulação se manifesta.
 
BC- O que é a Contabilidade Criativa?

Fabrício Oliveira – A contabilidade criativa consiste em um artifício contábil utilizado pelos administradores públicos e privados para ocultar resultados negativos de suas atividades ou para produzir melhores resultados em relação aos que foram efetivamente alcançados. Trata-se, assim, mais claramente, de uma maquiagem da realidade patrimonial de uma entidade, por meio da manipulação de dados contábeis, para apresentar uma imagem mais favorável de seu desempenho. A não ser nos casos em que essa prática contábil provoca prejuízos para investidores, acionistas ou fornecedores, ela não se configura legalmente como crime, apenas se valendo de brechas, omissões e falta de melhor regulamentação das regras contábeis para produzir resultados mais favoráveis para a entidade privada ou pública. Mas, ao prejudicar a credibilidade das informações apresentadas, induzindo seus usuários a erros de avaliação, representa uma prática eticamente condenável.

BC-Os Relatórios do Tribunal de Contas de MG constatam que entre 2003 e 2006 os cálculos da Receita Corrente Líquida (RCL) realizados pelo Governo de Minas Gerais foram sempre superiores aos do Tribunal. O governo de Minas se valeu da Contabilidade Criativa para inflar sua receita e os resultados do programa “Choque de Gestão”?

Fabrício Oliveira – De fato, entre 2003 e 2006 e, em menor dimensão, também em 2007, o cálculo da Receita Corrente Líquida (RCL) realizado pelo Poder Executivo do Governo do Estado de Minas Gerais foi sempre superior ao realizado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-MG). Isso se explica por que o Executivo deixou, durante este período, de considerar várias deduções previstas em lei para a realização deste cálculo, incorrendo em duplicidade na contabilização de algumas de suas receitas e alargando, indevidamente, essa base. Só a partir de 2007 é que começou, efetivamente, a haver uma convergência desses valores, provavelmente devido a um acerto da metodologia entre as duas instituições. Ao inflar essa base, todos os indicadores da Lei de Responsabilidade Fiscal apresentaram resultados bem melhores do que os que vinham sendo alcançados.

BC- Ao alargar indevidamente a base da RCL, quais foram os benefícios alcançados pelo governo do Estado?

Fabrício Oliveira – Bom, é preciso considerar que o conceito de Receita Corrente Líquida dos governos é utilizado como parâmetro para o cálculo dos principais indicadores das finanças públicas previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, como, por exemplo, os de gastos com pessoal e de endividamento. No caso das despesas com pessoal, esse limite é de 60% para o conjunto do governo, ou seja, para os gastos do Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público, mas o limite prudencial é de 57%. No da dívida, o limite atual é de duas vezes o valor dessa receita para o governo se considerar perfeitamente enquadrado nas normas da Lei. Quando isso ocorre – esse enquadramento -, ele passa a ter condições legais de voltar a tomar empréstimos no mercado, ou seja, de lançar mão do endividamento como forma complementar de financiamento de seus gastos. Pelos cálculos do TCE isso só teria ocorrido a partir de 2006. Pelo do Executivo, em 2005, ano em que recebeu autorização das autoridades competentes para retornar ao mercado de crédito e para voltar a contratar dívida. Sem dúvida, um grande benefício, além do fato de que tal situação foi vendida para a população como resultado de uma administração competente no manejo e administração das contas públicas.

BC-O governo de Minas utiliza o critério do Resultado Orçamentário para mostrar que as contas públicas têm se apresentado superavitárias desde 2004. O senhor diz que este critério pode esconder desequilíbrios que não estão à vista. Quais são esses desequilíbrios?

Fabrício Oliveira – É preciso considerar que o conceito utilizado pelo governo, que é o de resultado orçamentário, pouco nos diz sobre a situação e o desempenho das suas contas. Isso porque ele contabiliza, do lado das receitas, de acordo com as normas da Lei 4.320, de 1964, as operações de crédito, que se referem a empréstimos contratados exatamente para fechar o orçamento. Assim uma situação de superávit ou equilíbrio pode estar ocultando uma situação de desequilíbrio das contas, quando essas receitas são desconsideradas. Em segundo lugar, porque os governos que renegociaram a dívida com a União, em 1998, não têm mais registrado, no orçamento, a parcela dos juros dessa dívida que não são pagos, transferindo-os diretamente para o seu estoque. Como o pagamento desses encargos está limitado em 13% de sua Líquida Real e, no caso de Minas Gerais, o estoque dessa dívida, que atualmente supera os R$ 50 bilhões, é corrigido pela variação do IGP-DI, acrescentado de juros reais de 7,5% ao ano, os juros pagos, que aparecem no orçamento, têm sido sempre bem inferiores aos efetivamente devidos. Essa diferença não aparece, contudo, no orçamento, sendo diretamente incorporada ao estoque da dívida. Se inscrita no orçamento, em lugar do superávit que o governo tanto alardeia, na sua estratégia de marketing, apareceria um déficit, às vezes bem elevado, indicando que não foi realizado nenhum ajuste estrutural de suas contas e que, ao contrário, o passivo do governo é crescente no tempo.

BC- Quais fatores contribuíram para o aumento da Dívida Líquida Consolidada (DCL) do estado de Minas Gerais que evoluiu de R$ 30,5 bilhões, em 2002, para R$ 52,2 bilhões em 2009?

Fabrício Oliveira – Não restam dúvidas de que são os encargos da dívida do governo renegociada com a União que têm – e devem continuar – alimentando o crescimento de seu estoque no tempo, já que os juros que são anualmente pagos, limitados em 13% de sua receita corrente líquida, são insuficientes para cobrir os juros totais, o que termina aumentando o seu estoque. Nesse estoque não se encontram contabilizados muitos precatórios e outras dívidas e também outros passivos ocultos ainda não reconhecidos, o que nos permite inferir que o endividamento do governo do estado é bem maior do que os números atualmente divulgados da Dívida Líquida Consolidada. Além disso, desde 2005, o governo voltou a contratar novos empréstimos para financiar investimentos, o que deve agravar sua situação financeira nos próximos anos e aumentar o comprometimento da receita com o pagamento de seus encargos, engessando ainda mais o orçamento estadual.

BC- O Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) diz que, ao contrário do que informa o governo de Minas, o estado destina para a saúde recursos bem abaixo do exigido pela EC 29, não raro figurando entre os estados que apresentam a piorperformance no cumprimento desta determinação constitucional. Porque há essa discordância entre os cálculos do SIOPS e do Governo do Estado?

Fabrício Oliveira – Isso também é  verdade. Desde 2004 o governo do estado tem divulgado que os gastos que destina para a saúde têm sido superiores ao índice mínimo estabelecido pela Emenda Constitucional n. 29, que é de 12% da receita de impostos e transferências constitucionais. O SIOPS, que é um órgão do Ministério da Saúde, e que foi criado com a finalidade específica de fazer o acompanhamento da implementação da EC 29 e verificar o seu cumprimento, não concorda com os cálculos do governo, pois considera que neste cálculo estão incluídas várias despesas que não representam gastos especificamente com as “ações e serviços de saúde”, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela Resolução 322, do Conselho Nacional da Saúde, de 08/05/2003. Gastos com inativos do setor da saúde, com oferta de serviços para clientelas fechadas, com saneamento básico e mesmo com medicamentos/vacinas para animais são geralmente excluídos do cálculo deste índice pelo SIOPS. Em 2007, por exemplo, enquanto o governo do estado de Minas calculou que despendeu 13,3% de suas receitas com o setor da saúde, para o SIOPS esse percentual foi de apenas 7,09%. Em 2008, último ano de que se dispõe de cálculo deste órgão, o índice de Minas Gerais foi de apenas 8,65%. Para o governo do estado, de 12,2%. A inexistência de regulamentação dessa matéria, cujo projeto ainda se encontra em tramitação no Congresso Nacional, permite estes malabarismos contábeis sem nenhuma punição para o governo e ainda lhe dá argumentos para realizar propagandas sobre seu compromisso com o social, já que os números do SIOPS são desconhecidos. Essa situação, no entanto, pode mudar depois que essa matéria for regulamentada, como previsto na própria EC 29.